quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Viajante Solitário, Kerouac.

FINALMENTE AS CHUVAS DE OUTONO, noites inteiras de chuvas torrenciais sopradas pelo vento enquanto eu deitava aquecido como uma torrada dentro do meu saco de dormir, e claros dias outonais gélidos e turbulentos, com vento forte, nevoeiros céleres, nuvens velozes, brilho de sol súbito, luz pristina em retalhos da montanha, e meu fogo crepitando enquanto eu exulto e canto a toda voz. – Do lado de fora da minha janela um esquilo varrido pelo vento está sentado nas patas traseiras sobre uma rocha, mãos unidas, mordisca uma espiga de aveia que segura entre as patas – pequeno senhor de tudo o que inspeciona.

Pensando nas estrelas noite após noite começo a perceber que “As estrelas são palavras” e todos os incontáveis mundos da Via Láctea são palavras, e esse mundo também o é. E percebo que não importa onde eu esteja, seja em um quartinho repleto de idéias ou nesse universo infinito de estrelas e montanhas, tudo está na minha mente. Não há necessidade de solidão. Por isso, ame a vida pelo que ela é e não forme idéias preconcebidas de espécie alguma em sua mente.

QUE ESTRANHOS E DOCES PENSAMENTOS brotam nas solidões montanhosas! – Certa noite percebi que, quando tratamos as pessoas com compreensão e estímulo, uma expressão de humildade estranha e infantil lhes perpassa os olhos envergonhados, não importa o que estivessem fazendo, não estavam certas de que fosse correto – cordeirinhos espalhados por toda a face desta terra.

Visto que, ao compreender que Deus é Tudo, você percebe que deve amar tudo por pior que seja, em última análise nada é bom nem mau (pense na poeira), é apenas o que é, ou seja, o que se faz parecer. – Uma espécie de drama para ensinar algo a alguma coisa, alguma “substância menosprezada do mais divino dos shows”.

E percebi que não era necessário me esconder na desolação e que podia aceitar a sociedade para o que desse e viesse, como uma esposa – vi que, se não fosse pelos seis sentidos, visão, audição, olfato, tato, gosto e pensamento, a individualidade disso tudo, que é não-existente, simplesmente não haveria nenhum fenômeno para apreender, na verdade não haveria seis sentidos nem individualidade. – O medo da extinção é muito pior do que a própria extinção (a morte). – Perseguir a extinção no velho sentido nirvânico do budismo é em última análise uma bobagem, como os mortos indicam no silêncio de seu sono bem-aventurado na Mãe Terra que, de qualquer maneira, é um Anjo suspenso no Céu.

Eu simplesmente me deitava nos campos da montanha ao luar, com a cabeça na grama, e ouvia o reconhecimento silencioso das minhas angústias passageiras. – Sim, desse modo, tentar atingir o Nirvana quando você já está nele, atingir o topo de uma montanha quando já está lá e tem apenas que permanecer – assim, permanecer na bem-aventurança nirvânica é tudo o que tenho a fazer, que você tem a fazer, sem esforço, sem caminho realmente, sem disciplina, mas apenas saber que tudo é vazio e desperto, uma Visão e um Filme na Mente Universal de Deus (Alaya-Vijnana) e permanecer mais ou menos sabiamente em meio a isso. – Porque o silêncio em si é o som dos diamantes que podem cortar tudo, o som da Vacuidade Sagrada, o som da extinção e da bem-aventurança, esse silêncio de cemitério que é como o silêncio do sorriso de um bebê, o som da eternidade, da beatitude na qual certamente é preciso acreditar, o som de jamais-houve-nada-senão-Deus (que em breve eu ouviria em uma ruidosa tempestade no Atlântico). – O que existe é Deus em Sua Emanação, o que não existe é Deus na Sua serena Neutralidade, o que nem existe nem não existe é a divina e imortal aurora primordial do Céu Pai (este mundo neste exato instante). – Por isso eu disse: – “Permaneça nisso, aqui não existem dimensões para quaisquer das montanhas ou mosquitos ou vias lácteas inteiras de mundos”.

Porque sensação é vazio, envelhecimento é vazio. – Tudo é apenas a Dourada Eternidade da Mente de Deus; por isso pratique a bondade e a compreensão, lembre que os homens não são responsáveis por si mesmos, por sua ignorância e maldade, se deve ter pena deles, Deus se compadece porque o que há para dizer a respeito de qualquer coisa visto que tudo é apenas o que é, livre de interpretações? – Deus não é “aquele que alcança”, ele é o “viajante” naquilo em que tudo é, o “que subsiste” – uma lagarta, mil cabelos de Deus. – Portanto, saiba sempre que isto é apenas você, Deus, vazio, desperto e eternamente livre como os incontáveis átomos da vacuidade em todos os lugares.

Decidi que, quando retornasse ao mundo lá embaixo, tentaria manter minha mente límpida em meio às obscuras idéias humanas que fumegam como fábricas no horizonte através do qual eu caminharia, em frente…

Em setembro, quando desci, um gélido aspecto dourado surgira na floresta como um augúrio de frios repentinos, geadas e eventuais nevascas uivantes que cobririam meu barraco por completo a não ser que aqueles ventos do topo do mundo a conservassem intacta. Quando cheguei à curva da trilha onde meu barraco desapareceria e eu desceria até o lago para encontrar o barco que me levaria dali para casa, me virei e abençoei o Pico da Desolação e o pequeno pagode no cume e agradeci a eles pelo abrigo e pela lição que me ensinaram.

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