terça-feira, 16 de agosto de 2011

você não é insone, por renmero.

Acordou , sentou na ponta do colchão e tomou impulso para ficar de pé. Era a quarta vez na noite, duas em menos de trinta minutos, pensou ele enquanto ela abria a porta e saía.

A casa era grande demais para os dois e desde que começaram a sair juntos, acostumaram-se rapidamente com a falta de sono que sentiam de vez em quando. Por vezes era ele que ficava jogando videogame com fones de ouvido sentado quase na varanda, para a fumaça do beck não ficar toda na sala. Outras era ela que digitava furiosamente no laptop, no quarto que usavam de escritório e onde ficava a mesa que mandou instalar para poder trabalhar de pé. Sabiam que o sono naquela casa era frágil e respeitavam ao máximo a insônia alheia.Descobriram que possuíam o mesmo tipo de sono nas primeiras vezes em que dormiram juntos. Ou que tentaram. Naquelas primeiras noites em que só concordavam ir dormir após estarem cansados até o limite, era uma surpresa pros dois quando se viam acordados e se encarando minutos depois de tentarem ir dormir.

Só serviu para aproximá-los mais. Quando um perdia o sono, o outro ia cuidadosamente na cozinha, preparava um sanduíche com presunto, queijo branco e maionese (o dela era com salame e requeijão) e deixava um bilhete antes de voltar a dormir. Ele gastou meses de insônia traduzindo um conto do alemão que ela queria ler. E ele nem falava alemão. Durante uma semana particularmente difícil, ela organizou toda a coleção de mp3 dos laptops e hds externos da casa, com capas, tags corretas e até um sistema de estilos próprio que excluía qualquer coisa com post- no começo ou experimental no meio.

Certa madrugada, ele estava rangendo os dentes e sentado com a cara quase enfiada na tela do enorme monitor de LCD que usava para jogar videogame. Era mais uma daquelas partes dos jogos em que o chefão é uma merda de matar. Tem que esperar ele atacar, desviar em um só movimento lateral e acertar corretamente no ponto iluminado nas costas dele antes que ele vire novamente. Essa dança aparentemente simples tem que ser realizada vez após vez, sem perder um milímetro de precisão.

Toda vez que ficava preso ou enrolado em um jogo, ele começava a pensar nos moleques de 11 anos que estariam rindo dele naquele momento, passando por essas partes que lhe pareciam intransponíveis como se o desafio nem fosse digno de consideração. Ela nunca entendia a razão daquele tipo de mentalidade, que gerava uma competição desnecessária entre gerações. Os moleques de onze anos sempre serão melhores, ela dizia.

Após oitava tentativa frustrada consecutiva, ele tascou o controle pela janela. Imediatamente se arrependeu, esfregando os dedos nas mãos vazias sentindo falta da presença do controle branco suado. O barulho que entrou pela janela foi um créq abafado, ele nem quis ir ver o que aconteceu. Era muito raro para ele chegar nesse estado de raiva. Sempre aboliu comportamentos que instigassem ódio ou fúria, aprendeu com o tempo (e com a adolescência) a não precisar ficar com raiva das coisas. Não gostava e não via serventia naquilo.

Ela acordou no exato momento do créq e dos três cenários que pensou naquele momento (1- alguém abriu a porta da cozinha com força, 2- ele havia derrubado algo frágil, como um fone de ouvido ou controle de tv, no chão e 3- algo havia caído pela janela da sala) sabia que teria de ser o que envolvia o exterior da casa. O barulho foi longe demais para ser ali dentro, por maior que a casa fosse. Levantou, calçou as havaianas dele, e foi até a sala acordando aos poucos.

“Esse barulho foi aqui?”
“Foi, desculpa te acordar, fui eu.”
O monitor enorme continuava ligado na frente dele, com o aviso de por favor reconecte o controle aparecendo.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Fiquei puto e sem querer joguei o controle pela varanda”
A varanda era um pouco longe demais para entrar na categoria do “foi sem querer”, ela pensou. Mas ficou calada.
“Hum rum, e cê tá bem? Quer alguma coisa–”
“Desculpa te acordar, tava foda passar dessa parte aqui e fiz merda”
Ele continuava sentado na mesma posição, encarando a tela ou o chão, com os cotovelos em cima dos joelhos, passando as mãos no rosto e na nuca.

Ela ficou em pé na varanda, procurando o lugar onde o controle havia caído. Dava pra ver os pedaços brancos espalhados pelo chão ao lado de um carro preto desses mini-van. Pelo menos não tinha acertado nada. Uma queda do quarto andar em cima de um carro teria feito algum estrago. Precisariam de um controle novo. Sentou ao lado dele e passou o braço direito em suas costas. Muito do que acontecia com os dois era silencioso, era entrelinha. No começo do relacionamento costumavam falar por horas e dias e meses. Hoje ficavam calados, observando um ao outro como se estivessem em uma jaula e não houvesse outra opção.

“Sabe”, ele sempre começava seus monólogos com um sabe, “tem madrugadas que fico aqui jogando videogame, tomando uma cerveja e olhando de vez em quando pela varanda. E tem madrugadas em que faço tudo isso, mas só consigo pensar em ti. A sensação de te ter dormindo ali quietinha enquanto estou aqui tentando achar o meu sono é muito boa. Será que isso é normal? O jeito como a gente vive? Faz muito tempo que a não gastamos uma madrugada apenas conversando um com o outro. Entramos na fase do subentendido, né? Essa é a evolução natural, é assim que seremos? Aqueles casais que não trocam palavras, mas que antecipam com detalhismo absurdo as ações um do outro? Não que isso seja algo ruim, pelo contrário. Esse pensamento acabou de me pegar agora, quando estava puto com um videogame besta e só a tua mera presença aqui na sala, indo olhar a varanda e me fitando com ares de que vamos precisar de um controle novo, me acalmou. Acho que estou dependente de ti, muito mais do que costumava pensar que era, do que quero admitir que estou. Não é um pouco assustador isso? Parece que envelhecemos rápido demais, pulamos décadas e décadas de convivência e alcançamos um platô que parece reservado apenas para casais mais velhos e que já cometeram sua parcela de crimes juntos. Acho que quero casar contigo.”

Ela sabia que o romantismo exacerbado dele muitas vezes era sincero. “Estamos fazendo a parte mais difícil agora, os anos de silêncio. As brigas sem rompantes. Já somos casados, meu bem”.

E assim eles viraram um desses casais que não aparentam nem terem existido separadamente antes de serem um casal.


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