quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Uma noite com Jack Kerouac

Era um pouco tarde e o bairro vazio não era convidativo àquelas horas. Havia a brisa do mar que se concentrava atrás dos prédios e o barulho das ondas ao longe que ressoam nitidamente, já que a cidade estava quieta. Os postes fingiam ser sol e projetavam sombras distorcidas sobre o chão de paralelepipedos que seguiam uma daquelas métricas que te hipnotiza e induz a pisar em quadrados certos ou pular as linhas.
Essas divisórias entre as pedras me lembram uma historia que me contaram há um tempo atrás; uma lenda, talvez. Diziam que se por acaso você pisasse nessas linhas divisórias você seria abduzido. Talvez essa historia de ETs vindo te buscar esteja enterrada no subconsciente de cada cidadão que pula essas linhas fazendo uma espécie de aposta consigo mesmo. Vira e mexe faço apostas comigo mesma e nem sei se acredito em ETs.
Ela estava voltando pra casa sozinha, de biquini ainda e com um pouco de caipirinha na cabeça. Não estava se importando com as linhas no chão ou com as sombras das árvores; queria mesmo era saber do cheiro do mar e da textura do vento que sobe dele.
Disse boa noite ao porteiro que respondeu com um aceno indiferente, apertando logo depois o botão que abria o portão e fazia um barulho realmente feio.
Passou pelo estacionamento cheio de carros e depois por uma salinha de espera que nunca tinha ninguém... como os corredores e as escadas.
O apartamento ficava no terceiro andar. As janelas não davam de cara pro mar e o basculhante da cozinha estava de frente pra janela do banheiro da vizinha. Era um lugar espaçoso e um tanto aconchegante, se não fosse o corredor sempre vazio e as paredes amareladas.
A porta do apartamento era de frente pra escada. Ela passava um tempo olhando o olho mágico pra ver se alguma viv'alma subia ou descia as escadas em algum momento dos dias ensolarados ou das noite solitárias, mas nunca viu ninguém, nenhuma prova de que alguém além dela vivia naquele prédio (só sabia que não estava completamente sozinha pelos carros no estacionamento que ela chegou a duvidar que tivessem mesmo donos).
Ela subiu as escadas mais uma vez e seguiu como que por extinto em direção ao apartamento, almejando o sofá e tropeçando nos degraus que ela havia esquecido de contar.
208. As chaves se perderam na bolsa cheia de tranqueiras das quais não conseguia se desvenciliar, como seus óculos escuros e o protetor solar. Também tinha a carteira com quase dinheiro nenhum e um livro do jack kerouac.
As chaves, enfim, e a porta escancarada.
Entrou e trancou-se logo. Largou a bolsa e as chaves na mesa e seguiu em direção a cozinha.
Pegou o pó de café e colocou a agua pra ferver. Deu uma olhada e não vira ninguém no banheiro da casa da frente. Tirou a camiseta e jogou um pouco de água na cara, por mais que sua mãe sempre tenha dito pra não fazer isso na pia da cozinha.
Preparou o café adoçou na caneca vermelha. Seguiu para a sala e sentou-se encarando a TV desligada. Com os pés ainda sujos de areia deitou no sofá após terminar o café. Olhou pro teto e perguntou porque estava ali e como tinha chegado até lá. Passou um tempo sem pensar em nada e depois lembrou um pouco do mar e do som e das cores... e da vodka com limão e dos rapazes queimados de sol.
Desistiu de tentar entender qualquer coisa e levantou-se com esforço indo lentamente até o banheiro e tomou uma ducha, de bermuda jeans e tudo. Molhou os cabelos e saiu pingando procurando a toalha que sempre esquecia de levar junto quando ia tomar banho.
Colocou uma roupa qualquer e foi à sala de novo. Pegou a bolsa em cima da mesa; conferiu as chamadas não atendidas de seu celular sem retornar nenhuma e deitou com as mãos nos olhos outra vez.
As paredes haviam parado de girar e seus músculos voltaram ao normal quando escuta um barulho vindo da cozinha. O microondas despertara por motivos desconhecidos até o presente momento e ela só fez deligar da tomada sem se preocupar, querendo apenas acabar com o ruido infernal.
Seguindo de volta ao sofá que a essa hora já tinha o formato do corpo dela em seu tecido enrugado ela encara a bolsa entreaberta em cima da mesa, com um pouco de areia e manchas escuras e vê o livro de seu amante escondido entre os papéis que ficam ali jogados durante meses.
Ela o pega determinada e vê que o marca páginas amarelo - com uma bela dedicatória e cheiro de lembrança - está quase no fim do livro e resolve terminá-lo ali, em pé, naquele exato instante.
Começa a ler e percebe um trecho grifado que depois de colocar a cabeça no lugar lembra que ela mesma grifou, horas antes, no quiosque, antes de beber com um casal que nunca tinha visto na vida mas que eram legais e interessantes e que só lhe ofereceram uma(s) dose(s) de vodka ao verem que a garota também gostava do poeta beat.
Ela relê com cuidado a parte marcada no livro e descobre um dos trechos mais lindos que já lera na vida*; uma espécie de oração sem medo de adorar a Deus sabendo que tudo é Deus. Um mantra jogando na cara dela que você não deve ter preconceitos em relação a nada já que tudo é o que é e é puro e intenso e verdadeiro. Um poeta falando sobre o amor a tudo por pior que seja. Alguma voz dizendo à garota que nada é bom nem mau, que tudo é vazio e desperto, uma visão e um filme na mente universal de Deus.
Ela fechou o livro após dar-se conta de que a vida era o que fazia parecer ser e que ela precisava compreender todos os segredos e diferenças para então ser livre como os incontáveis átomos da vacuidade em todos os lugares.
Era tarde, o corredor do prédio continuava vazio. Ela apagou um cigarro numa das caixinhas de areia que ficam embaixo das escadas e saiu a procura do que ela nem sabia o que era, só sabia que encontraria.
Olhou aos céus logo depois de dizer ao porteiro que já voltava e agradeceu a Jack Kerouac e às estrelas. Seguiu sem pisar nas linhas divisórias e encarou o mar quando chegou em frente a praia.
Sentiu-se livre pela primeira vez. Inteira pela primeira vez. E concluiu que

Um comentário:

Roberta Albano disse...

e concluiu que...

????????????????

que absurdo interromper aí :P

mas sim, o texto está ótimo
espero que tenha uma continuação antes que eu continue baendo a cabeça na parede